Qua, 06 Mai, 10h40
Por Rafael Sento Sé, da Revista Sustenta
Os primeiros portugueses que desembarcaram em terras cariocas confundiram as águas da Baía de Guanabara com as de um rio. Não faziam idéia da extensão da riqueza que haviam acabado de encontrar. As águas plácidas abrigavam centenas de ilhas, praias, dunas, restingas, num total de catorze ecossistemas e ambientes. Se os colonizadores chegassem hoje, talvez a confundissem com um gigantesco depósito de lixo. Essa é a realidade de boa parte da baía que, ao longo do desenvolvimento urbano da região metropolitana do Rio, aprendeu a duras penas a conjugar o verbo resistir.
Diariamente chegam a suas águas oitenta toneladas de lixo. Por segundo, são lançados vinte mil litros de esgoto. Ao longo dos últimos 50 anos, foram construídos dois aeroportos, nove aterros e uma refinaria de petróleo. A unidade da Petrobras, é bom lembrar, foi responsável pelo maior acidente ecológico da história da Guanabara, em 2000, quando vazaram 1,3 milhão de m³ de óleo cru em suas águas. Tudo isso faz com que, hoje, a Baía de Guanabara, uma da imagens emblemáticas das belezas naturais do Brasil, esteja na lista de cartões-postais ameaçados, e comprometa a qualidade de vida da população que vive na região, um total de mais de dez milhões de pessoas.
O preocupante é que a perspectiva para o futuro não é das mais animadoras. Há em curso um novo surto de industrialização nas cidades ao redor da baía. A história pode voltar a se repetir caso a Petrobras consiga em definitivo o licenciamento para instalar o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj). É simplesmente o maior empreendimento em fase de licenciamento da América Latina, que terá capacidade para processar 150 mil barris de petróleo por dia, numa região que fica a dez quilômetros da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim. O valor total de investimento chega a US$ 8,5 bilhões.
A APA é uma área de 80 km² de manguezal remanescente no fundo da baía que, em boa parte, explica sua sobrevivência quase milagrosa até os dias de hoje. "É lá que deságuam os únicos quatro rios que conservaram seus cursos d'água preservados", explica o geógrafo Elmo Amador, autor da principal obra sobre a Guanabara, "Baía de Guanabara e ecossistemas periféricos". A combinação dos dois fatores faz da região uma espécie de berçário para a fauna local. "Os impactos sobre a APA são inevitáveis. O Comperj trará um grande crescimento demográfico. É o momento de maior preocupação da história da APA, mas nós vamos resistir", avisa o chefe da reserva, Breno Herrera.
Política em xeque
A autorização para o empreendimento, mesmo que provisória, coloca em xeque a política de licenciamento ambiental do ex-secretário estadual, atual ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. Uma equipe de vinte técnicos das mais diversas áreas da Fundação Estadual de Engenharia de Meio Ambiente analisou as sete mil páginas do documento em apenas seis meses e estabeleceu contrapartidas para a estatal, entre elas, o reflorestamento das margens dos rios Caceribu e Macacu.
A Petrobras ainda não definiu, por exemplo, de onde vai trazer a água que abastecerá a refinaria. Na região, o abastecimento da população é feito por meio de poços. O risco de acidentes e o aumento da poluição atmosférica também preocupam os ambientalistas. "A pergunta que me faço é por que instalá-la ao lado de uma APA tão importante. Macaé, no Norte do Estado, seria muito mais apropriado, é de lá que vem o óleo e fica numa região de mar aberto", defende Amador.
Outra ameaça é conseqüência da má gestão do lixo. O aterro de Gramacho, em Duque de Caxias, construído em uma área de mangue ao lado da baía, está funcionando além de sua capacidade. "É uma bomba-relógio. Está para romper e o prefeito ainda não apresentou uma alternativa", alerta Elmo Amador.
A pobreza extrema de uma grande parte da população é outra face da mesma moeda da degradação ambiental, ambos produtos do mesmo processo", contextualiza Amador. As línguas negras nas praias da zona sul, frequentes em épocas de chuva, não aparecem por acaso. A partir do século 20, com o crescimento desenfreado do número de habitantes do Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo e Baixada Fluminense, a população de baixa renda se instalou em áreas sem serviços públicos básicos, como coleta de lixo e de esgoto.
Justamente por isso, hoje, outra importante fonte de poluição na região são os resíduos e dejetos domésticos, que provocam um grave problema de assoreamento. "A baía vem perdendo entre 1 e 5 centímetros de profundidade por ano", alerta Elmo Amador. Na região que mais sofreu com o derramamento de óleo de 2000, o cenário é assustador. "Quando a maré está baixa, é possível percorrer a pé 80% do trajeto entre Tubiacanga, na Ilha do Governador, e a refinaria da Petrobras", lamenta o ambientalista Sérgio Ricardo de Lima, uma das vozes mais atuantes no processo movido contra a empresa. Nesse ritmo, os pesquisadores estimam que um terço da baía possa desaparecer em até cem anos, o que pode acarretar em enchentes e problemas de saúde pública que prejudiquem diretamente a população.
Estação em eterna inauguração
Um passo importante para melhorar o tratamento de esgoto foi dado neste ano, quando entrou em funcionamento a Estação de Tratamento de Esgoto da Alegria. Com capacidade para tratar 2,5 mil litros de esgoto por segundo, ela pode tratar até 98% dos resíduos e entrou em fase de pré-operação. "A diferença é que agora o esgoto vai chegar até aqui, finalmente foram construídos os troncos coletores", esclarece o ministro do Meio Ambiente Carlos Minc, que foi pessoalmente ao evento de inauguração da ETE.
A unidade deve ampliar de 25% para 35% a capacidade de tratamento do esgoto em toda a região metropolitana do Rio, alcançando principalmente a zona norte da cidade. Ao lado da obra de dragagem do Canal do Cunha e do Fundão, a estação promete eliminar o mal cheiro presente no caminho entre o aeroporto internacional e o centro do Rio, um problema vergonhoso para um pólo turístico como a cidade marvilhosa. Pelo menos é o que afima o governo do estado para curto prazo.
Mas as promessas sempre foram muitas - poucas, entretanto, chegaram a ser cumpridas, como a despoluição das 53 praias da baía, o fechamento de aterros e o Plano Diretor de Assoreamento. "Ainda não veremos melhorias na balneabilidade porque, além da poluição por esgoto, os rios que deságuam na baía trazem muito da chamada poluição difusa que é a da lavagem do solos, do lançamento de lixo e chorume", justifica a atual secretária estadual do Ambiente, Marilene Ramos.
A poluição difusa, aquela causada pela população que joga lixo na rua, por exemplo, poderia ser evitada com campanhas de educação ambiental e uma atitude mais firme na fiscalização de posturas urbanas que cabe aos municípios. "Fui numa feira de artesanato no mês passado e vi uma cena que mostra bem isso. Uma baiana de acarajé estava guardando suas coisas e jogou todo o óleo da fritura na rede de águas pluviais. Aquilo vai direto para a baía sem nenhum tipo de tratamento", explica Dora Hess, presidente do Instituto Baía de Guanabara, ONG que desenvolve campanhas de conscientização e ações em prol da baía.
A falta de uma atuação mais efetiva dos poderes municipais na questão ambiental é alvo de críticas freqüentes. "Nenhum dos municípios tem um sistema de coleta do lixo flutuante. Assim como eles alugam caminhão, por que não alugam um barco? É mais barato recolher o lixo que está flutuando do que o que chega às areias das praias", afirma o fundador da Rede Brasileira de Informação Ambiental, Vilmar Berna, que já recolheu seis toneladas de lixo de uma única praia da baía com a ajuda de 200 voluntários. Se todo mundo se preocupasse com o destino correto do lixo, grande parte desse problema estaria resolvido. Esse pode ser um bom começo para ajudar a Baía de Guanabara - pois, sozinha, ela não consegue mais resistir.